O assobio da saudade
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Domingos Rodrigues com a sua bicicleta de amolador
É sábado de manhã, a intensa luz do sol acorda-a. Ela sorri e fecha os olhos por breves momentos. É então que o ouve. O assobio que costuma confortá-la nas manhãs de sábado. Quando ela ouve aquele característico som lembra-se de uma Lisboa que não conheceu.
Domingos Rodrigues tem 48 anos e é amolador em Lisboa, desde os seus 16 anos. Percorre as ruas desta cidade exaustivamente à procura de clientes. Por isso, conhece-a como a palma da sua mão.
O dia deste amolador começa bem cedinho. E, com o seu assobio, a sua Lisboa vai despertando mantendo-se genuína e autêntica.
Um dia de trabalho
São oito horas da manhã. Domingos vai buscar a sua bicicleta, que fica sempre bem guardada ao pé do posto da GNR de Entre Campos. Está pronto, então, para começar o seu dia.
Empurrando a sua bicicleta de 50 quilos anda com passo firme e cheio de esperança em encontrar clientes. Vai assobiando a sua flauta de Pan, também por vezes conhecida pela flauta do amolador. “Este apito que eu ando a apitar puxa pelos pulmões. Cansa muito e fico com a garganta bastante seca”, diz com um sorriso nos lábios.
Aprendeu o ofício com os seus tios que, por vezes, ainda trabalham na zona de Sintra. Desde muito novo que via os seus tios serem amoladores e foi natural para Domingos aprender este ofício, tendo demorado um ano a fazê-lo.
Domingos confessa que os dias de trabalho já lhe custam. “Já só saio dois dias ou três por semana. Normalmente fazemos 30 ou 40 quilómetros por dia. E como eu já tenho uma certa idade as pernas e o corpo sentem-se”.
“Já viu o que já andámos e ainda não houve um único cliente?”, constata Domingos depois de já duas horas de trabalho. Os clientes são cada vez mais raros e esporádicos, por isso Domingos acaba por trabalhar menos horas do que antigamente. Em vez de andar por Lisboa oito horas por dia anda apenas quatro ou cinco.
A sua esposa acompanha-o sempre. Paula Natércia tem 38 anos e toda a sua vida vendeu roupas em feiras. Hoje está a receber um subsídio do estado para ajudar nas despesas da sua família e, no seu tempo agora livre, vai ajudando o seu marido acompanhando-o pelas ruas de Lisboa.
Paula e Domingos dizem que viver da profissão de amolador, hoje em dia, é impossível. Há vinte anos atrás Domingos tinha clientes certos. As costureiras, os alfaiates e as fabriquetas de roupa interior recorriam ao amolador mensalmente. Agora está tudo fechado e os sobreviventes recorrem ao amolador esporadicamente. “Havia muitas costureiras mas já morreram, porque também já eram velhotas. E depois ninguém aprende os ofícios, o pessoal novo não sabe trabalhar com uma faca ou com uma tesoura”, conta o senhor Domingos.
Finalmente, o dono de um restaurante aborda Domingos com duas facas para serem amoladas. De vez em quando Domingos ainda arranja alguns clientes que lhe trazem maioritariamente tesouras, facas e alguns chapéus de chuva. Pergunto-lhe sobre a ideia dos amoladores adivinharem chuva e Domingos responde-me divertido: “Ah, isso é só um ditado.”
Ofício do amolador
Esta profissão foi introduzida em Portugal pelos galegos. Durante muitos anos os amoladores em Portugal eram espanhóis e percorriam as ruas de Lisboa com uma grande roda que tinha um mecanismo especial que lhes permitia afiar vários objectos.
Mais tarde os portugueses aprenderam este ofício e adaptaram-no. Em vez da roda que não lhes permitia andar muitos quilómetros com muita rapidez inventou-se a bicicleta do amolador.
Segundo Domingos e Paula, esta profissão está, também, relacionada com os tendeiros. “Os tendeiros eram os que faziam formas, grelhas, regadores, tabuleiros, torradeiras, fundos das panelas e cabides. Também vendiam escovas e pano a metro. A minha família era tendeira. Eu ainda aprendi a fazer formas, mas os meus irmãos não. Geralmente eram pessoas habilidosas mas não quer dizer que fosse a família inteira. Eram os chamados quinquilheiros. Temos até um dialecto, tal como os ciganos”.
Assim o amolador não amolava apenas. O amolador arranjava pratos de louça, soldava e metia os fundos às panelas.
Antigamente, Domingos tinha clientes certos o que lhe permitia cativá-los baixando os preços. Hoje os preços vão de um a cinco euros, dependendo da peça. “Quando eu comecei a trabalhar levava cinco escudos por cada tesoura ou faca, agora em média levo dois euros ou dois euros e meio. Já nem vale a pena fazer preços especiais. Não há clientes!”
Lisboa do amolador
Domingos nasceu em Lisboa, mas viveu alguns anos da sua adolescência em Faro, no Algarve. Diz não ter saudades desses anos, pois não gosta do Algarve. Para Domingos voltar para Lisboa foi um desejo concretizado. “Quem me tira Lisboa, tira-me tudo. As pessoas cá são muito dadas, apesar de tudo.”
É com um brilho nos olhos que relembra os tempos em que andava pendurado nos eléctricos e nos autocarros. Costumava vender pensos rápidos nas ruas quando era pequeno, por isso conhece Lisboa como ninguém.
Antigamente às três ou quatro da manhã havia tantas pessoas em Lisboa como hoje durante o dia, conta Domingos. ”As pessoas sentiam-se mais seguras. Passeavam e também compravam mais nas ruas.”
Quando Domingos já era amolador, além de assobiar, costumava gritar, “Olha o amolador!”. Nos tempos antigos as pessoas viviam mais na rua e ouviam este chamamento. Agora Domingos diz que já não vale a pena, pois com os grandes prédios ninguém vai ouvir.
Lisboa mudou. Domingos cresceu. Ambos mudaram, mas têm uma ligação muito especial. O trabalho deste amolador devolve a esta cidade algum do seu passado.
Esta profissão está a extinguir-se, pois já quase ninguém recorre ao amolador. Domingos não vê melhores dias para a profissão que considera ser a sua paixão. Apesar das dificuldades quer continuar a ser amolador e a tentar resistir aos tempos modernos que parecem não incluir este ofício.
Paula apoia o seu marido e considera esta profissão muito importante. “As pessoas deviam dar valor e não dão. Toda a gente gosta do assobio, mas ninguém nos liga. Este assobio é uma obra de arte, é uma recordação. Ouvimos e recordamos outros tempos. É uma coisa antiga e típica, tal como o fado e as comidas tradicionais.”
Já ao pé da estação de Roma – Areeiro, depois de cinco horas de trabalho, Domingos decide acabar com o seu dia de trabalho.
O casal vai voltar para casa e cuidar da sua horta, que criaram como forma de auto-subsistência. Domingos regressa a casa feliz por fazer o que gosta e por oferecer a cada senhora que ia à janela observar o amolador, depois de ter ouvido o seu assobio, uma recordação de Lisboa.
Por Sofia Mendes.
Domingos Rodrigues tem 48 anos e é amolador em Lisboa, desde os seus 16 anos. Percorre as ruas desta cidade exaustivamente à procura de clientes. Por isso, conhece-a como a palma da sua mão.
O dia deste amolador começa bem cedinho. E, com o seu assobio, a sua Lisboa vai despertando mantendo-se genuína e autêntica.
Um dia de trabalho
São oito horas da manhã. Domingos vai buscar a sua bicicleta, que fica sempre bem guardada ao pé do posto da GNR de Entre Campos. Está pronto, então, para começar o seu dia.
Empurrando a sua bicicleta de 50 quilos anda com passo firme e cheio de esperança em encontrar clientes. Vai assobiando a sua flauta de Pan, também por vezes conhecida pela flauta do amolador. “Este apito que eu ando a apitar puxa pelos pulmões. Cansa muito e fico com a garganta bastante seca”, diz com um sorriso nos lábios.
Aprendeu o ofício com os seus tios que, por vezes, ainda trabalham na zona de Sintra. Desde muito novo que via os seus tios serem amoladores e foi natural para Domingos aprender este ofício, tendo demorado um ano a fazê-lo.
Domingos confessa que os dias de trabalho já lhe custam. “Já só saio dois dias ou três por semana. Normalmente fazemos 30 ou 40 quilómetros por dia. E como eu já tenho uma certa idade as pernas e o corpo sentem-se”.
“Já viu o que já andámos e ainda não houve um único cliente?”, constata Domingos depois de já duas horas de trabalho. Os clientes são cada vez mais raros e esporádicos, por isso Domingos acaba por trabalhar menos horas do que antigamente. Em vez de andar por Lisboa oito horas por dia anda apenas quatro ou cinco.
A sua esposa acompanha-o sempre. Paula Natércia tem 38 anos e toda a sua vida vendeu roupas em feiras. Hoje está a receber um subsídio do estado para ajudar nas despesas da sua família e, no seu tempo agora livre, vai ajudando o seu marido acompanhando-o pelas ruas de Lisboa.
Paula e Domingos dizem que viver da profissão de amolador, hoje em dia, é impossível. Há vinte anos atrás Domingos tinha clientes certos. As costureiras, os alfaiates e as fabriquetas de roupa interior recorriam ao amolador mensalmente. Agora está tudo fechado e os sobreviventes recorrem ao amolador esporadicamente. “Havia muitas costureiras mas já morreram, porque também já eram velhotas. E depois ninguém aprende os ofícios, o pessoal novo não sabe trabalhar com uma faca ou com uma tesoura”, conta o senhor Domingos.
Finalmente, o dono de um restaurante aborda Domingos com duas facas para serem amoladas. De vez em quando Domingos ainda arranja alguns clientes que lhe trazem maioritariamente tesouras, facas e alguns chapéus de chuva. Pergunto-lhe sobre a ideia dos amoladores adivinharem chuva e Domingos responde-me divertido: “Ah, isso é só um ditado.”
Ofício do amolador
Esta profissão foi introduzida em Portugal pelos galegos. Durante muitos anos os amoladores em Portugal eram espanhóis e percorriam as ruas de Lisboa com uma grande roda que tinha um mecanismo especial que lhes permitia afiar vários objectos.
Mais tarde os portugueses aprenderam este ofício e adaptaram-no. Em vez da roda que não lhes permitia andar muitos quilómetros com muita rapidez inventou-se a bicicleta do amolador.
Segundo Domingos e Paula, esta profissão está, também, relacionada com os tendeiros. “Os tendeiros eram os que faziam formas, grelhas, regadores, tabuleiros, torradeiras, fundos das panelas e cabides. Também vendiam escovas e pano a metro. A minha família era tendeira. Eu ainda aprendi a fazer formas, mas os meus irmãos não. Geralmente eram pessoas habilidosas mas não quer dizer que fosse a família inteira. Eram os chamados quinquilheiros. Temos até um dialecto, tal como os ciganos”.
Assim o amolador não amolava apenas. O amolador arranjava pratos de louça, soldava e metia os fundos às panelas.
Antigamente, Domingos tinha clientes certos o que lhe permitia cativá-los baixando os preços. Hoje os preços vão de um a cinco euros, dependendo da peça. “Quando eu comecei a trabalhar levava cinco escudos por cada tesoura ou faca, agora em média levo dois euros ou dois euros e meio. Já nem vale a pena fazer preços especiais. Não há clientes!”
Lisboa do amolador
Domingos nasceu em Lisboa, mas viveu alguns anos da sua adolescência em Faro, no Algarve. Diz não ter saudades desses anos, pois não gosta do Algarve. Para Domingos voltar para Lisboa foi um desejo concretizado. “Quem me tira Lisboa, tira-me tudo. As pessoas cá são muito dadas, apesar de tudo.”
É com um brilho nos olhos que relembra os tempos em que andava pendurado nos eléctricos e nos autocarros. Costumava vender pensos rápidos nas ruas quando era pequeno, por isso conhece Lisboa como ninguém.
Antigamente às três ou quatro da manhã havia tantas pessoas em Lisboa como hoje durante o dia, conta Domingos. ”As pessoas sentiam-se mais seguras. Passeavam e também compravam mais nas ruas.”
Quando Domingos já era amolador, além de assobiar, costumava gritar, “Olha o amolador!”. Nos tempos antigos as pessoas viviam mais na rua e ouviam este chamamento. Agora Domingos diz que já não vale a pena, pois com os grandes prédios ninguém vai ouvir.
Lisboa mudou. Domingos cresceu. Ambos mudaram, mas têm uma ligação muito especial. O trabalho deste amolador devolve a esta cidade algum do seu passado.
Esta profissão está a extinguir-se, pois já quase ninguém recorre ao amolador. Domingos não vê melhores dias para a profissão que considera ser a sua paixão. Apesar das dificuldades quer continuar a ser amolador e a tentar resistir aos tempos modernos que parecem não incluir este ofício.
Paula apoia o seu marido e considera esta profissão muito importante. “As pessoas deviam dar valor e não dão. Toda a gente gosta do assobio, mas ninguém nos liga. Este assobio é uma obra de arte, é uma recordação. Ouvimos e recordamos outros tempos. É uma coisa antiga e típica, tal como o fado e as comidas tradicionais.”
Já ao pé da estação de Roma – Areeiro, depois de cinco horas de trabalho, Domingos decide acabar com o seu dia de trabalho.
O casal vai voltar para casa e cuidar da sua horta, que criaram como forma de auto-subsistência. Domingos regressa a casa feliz por fazer o que gosta e por oferecer a cada senhora que ia à janela observar o amolador, depois de ter ouvido o seu assobio, uma recordação de Lisboa.
Por Sofia Mendes.